sábado, 26 de outubro de 2013

Poesia do Senhor Antilógico

A vida corre-nos
ou corremos com a vida?
Vivemo-la com vontade ou
é ela quem nos convida?

Quem alimenta quem?
Quem é ser ou sendo amado?
Quem faz de alimento;
quem se faz de alimentado?

Não é a culpa de ninguém,
mas alguém tem de pagar este delito.
Dás tu o corpo às balas ou,
ou? Ou sou eu o senhor aflito?

«jd»

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Perverter

Por vezes adormeço com medo
que descubras que jazo
em ti tão sonhador.
Se te penso enquanto descansas,
repousa o dia todo
meu doce amor.

Não há cá bons razões
para mudar do noite para a dia,
há somente boas motivos
para pernoitar nesta harmonia.

Se permuto as letras do que escrevo,
é para que mais nada
me seja trocado.
Cozinho-te beijos no pensamento:
perverter é a infatigável tarefa
de um poeta apaixonado.

«jd»

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Relógio de Bolso

No relógio de bolso vejo as artes, as cores,
os triângulos desnudos na parede.
Anseio pela pornografia angelical
e por um romance que nos enrede.

Violo a tinta e a caneta, escrevendo
coisas desnexas de forma imparcial.
Arrumo todas as minhas ideias,
como quem organiza um memorial.

E fico aliviado por saber que há pessoas
diferentes a dotar dos mesmos sentimentos de calor.
Afinal não sou o único a divagar prosas imaginárias:
posso comprovar que ainda há esperança para o amor.

«jd»

em continuação do poema Frívola Mas Sensata Carta .

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Frívola Mas Sensata Carta

Mulher exponente, no teu passo diligente
és a senhorinha que me faz ser galanteador.
Que abonatória vida é esta, se permutamos
a covardia do travão pelo pedal do acelerador?

A madrugada amanhece-me e,
num assédio adentro, convida.
Convida-me a depreender que sou teu
desde início, desde há uma vida.

Escrevo-te, rascunho-te cartas,
sem saber por onde as encaminhar.
Vem morar comigo a partir de amanhã,
antes que se desvaneça este apaixonar.

«jd»

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Lê, Meu Amor Lê

Lê, meu amor lê, o que não te digo
quando acordado me sonho contigo.

Lê nestes lábios secos de rapaz
todas as palavras a ti desditas.
Admite que há, se te vires disso capaz,
uma estrada que em nós acreditas.

Lê, meu amor lê, o que não te digo
quando acordado me sonho contigo.

Ler é um assédio sob imposição
e eu ordeno-te que me assedies
da cabeça ao coração.

Lê, meu amor lê, o que não te digo
quando acordado me sonho contigo.

Não faças perguntas a um escritor,
quando óbvias são as suas respostas.
O amor doentio é o amor amor
que nunca deixamos atrás das costas.

Lê, meu amor lê, as entrelinhas do que jamais te direi
quando acordado sonho que contigo me deitei.

«jd»

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Sumário do Ser Amador

         Sou amador: a minha profissão é amar. Um Ser Amador é alguém profissional em amar.
         Embora seja profissional em Ser Amador, anda sou apenas um amador à beira daqueles que sabem amar, daqueles que sabem Ser Amadores.
         Sempre tive curiosidade em saber como se sentiria alguém a Ser Amado. Ser-se Amador é fácil: basta dar-se tudo o que não se tem e esperar que nos dêem a mínima parte do tanto que nos podiam dar. Ser Amador é fácil demais. O que nunca soube ser foi Ser Amado. Nunca tive engenho para isso. Nunca soube ser Ser Amado. Sim, ser Ser Amado. Nunca soube, nunca senti.
         Nunca senti o que os outros sentem quando eu lhes sou um profissional em Ser Amador, quando os amo. Nunca senti o que eles sentem. Nunca senti o que é Ser Amado. O que é estar do outro lado, do lado do amado. Sempre fui Ser Amador. Nunca fui Ser Amado. Sempre estive aqui, nunca estive do outro lado.
         Sempre fui o pobre que se fazia de rico. Sempre fui o sorridente que se refresca nas próprias lágrimas. Sempre fui o mentiroso que se dizia verdadeiro. Sempre fui Ser Amador. Sempre amei.
         Nem sempre te amei, mas amei-te sempre bem. Sou profissional em amar, em amar-te. Venero-te porque és aquela que sempre amei, porque és a tese, a ata de reunião, o sumário do Ser Amador. És o sumário do profissional Ser Amador que sou eu. Sou expert em amar-te. Sou o melhor no que faço e sei-o. Sou o melhor da minha profissão.
         Nunca ninguém te vai Ser Amador como eu te sou. Nunca ninguém te vai amar como te amo. Mas também nunca ninguém me vai Ser Amado como tu me és. Nunca vais Ser Amada por ninguém como és por mim.
         As nossas profissões complementam-se, equilibram a natureza. Se não estivermos juntos, estamos despedidos, falidos. Se eu for Ser Amador sem ti, serei Ser Amador sem quem me seja Ser Amado. Serei Ser Amador sem ninguém para amar. Mas, meu amor, se tu fores Ser Amada sem mim, serás realmente Ser Amada? Serás Ser Amada sem quem tenhas que te ame?
         "Sou amador: a minha profissão é amar"-te.
         Te. Amo-te.
         E nunca ninguém te vai amar como eu te amo.

«jd»

sábado, 5 de outubro de 2013

Temos as Mãos Agasalhadas

Ficamos onde a chama nos aquece,
onde o gelo ousa e nos derrete,
ficamos quando a areia nos incendeia
sempre que a vida impeça e nos afete.

Olhamos no chão e vemos
que foi-nos desenhado.
Não sabemos, perguntamos
quem tão bem ilustrou este milagre,
que abraçamos por ser abençoado.

Temos as mãos agasalhadas
entre paz e guerra assinadas,
temos ciclos de esperança
que embala amor e o balança.

Olhamos o céu e vemos
que o fado é por nós escrito:
as estrelas guiam sob o véu sombrio
e de dia o sol brilha o ar fumado
do brio de um extinto cigarrito.

«jd»

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

É o Certo que Queremos Sempre de Volta

         Voltava a fazer tudo igual: sem arrependimentos, sem costuras de improviso, sem maquilhagens que disfarçam o que nasceu mal. Mudava só os pontos que fizeram com que tudo falhasse. Esses, tão imensamente patentes na minha memória, só podem forçar-me a tentar, se vier a tentar, fazer tudo diferente sem que tenha de limar seja que aresta for.
         Não há casamento quando duas almas se juntam da forma como as nossas duas se fundiram. Não há pecado, traição, fraude ou fingimento sequer. Não há nada; há, no entanto, tudo: tudo o que passou, passou simplesmente porque se passou - passou porque aconteceu. Aconteceu e agora passou. Passou; fugiu; fugiu-nos. Passou-nos porque se passou - foi-se-nos porque aconteceu.
         Voltava a fazer tudo igual. Arrependia-me um pouquinho, mas voltava a fazer tudo igual. Os erros que nos parecem certos normalmente são os mesmos erros que nos parecem certos de poderem vir a ser errados.
         Se errei e nos sujei de consciência limpa, então a minha consciência não deixou de ser limpa só porque errei e nos sujei. Não há nada mais certo que o certo apenas nos parecer certo. É sempre assim: achamos sempre estar a fazer bem o que estamos a fazer. E não há nada mais preciso que o certo nos parecer acertado: e é-o sempre. Quando fazemos algo e achamos que o que fazemos é o correto, não há palavra - nada - que nos faça mudar de ideias.
         Voltava a fazer tudo igual. Mal, mas igual.
         Quando duas almas se juntam da forma como as nossas duas se fundiram, não há Deus, nem há guerra, nem há sentido de correto ou errado - tudo vira transcendente, tudo é uma verdade universal, tudo é imaculado, tudo é efémero também. Quando fazemos algo que achamos certo, mas que alguém sabe ser errado, o tempo pára e aquece a adrenalina que cresce em nós. Fazer o errado aquece-nos. Até escaldar a ação.
         O tempo parou naquele tempo em que eu pensava que estava a fazer o certo quando só fazia o errado. Agora que o tempo passou, acho que aquela sensação primordial de certo, de assertivo, de correto, era a vibração certa.
         Embora a reflexão me tenha tentado provar que o que eu inicialmente senti ser certo era errado, o errado agora - já com tanta saudade tua -, já me parece ser errado e, por isso, certo. Quando fazia o errado, pensava que era o certo. Quando me apercebi que era errado, errei por me aperceber disso. A saudade provou-me que afinal errei ao pensar que era um erro. Afinal o erro não era um engano, afinal aquele erro era o certo.
        O certo que nos parece errado.
        E é o certo - esse certo errado - que queremos sempre de volta: eis uma boa definição de amor.

«jd»

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Barca

Ontem pus-me a imaginar que era
um marinheiro abandonado,
daqueles que o mar mata e acelera
quando se sente a ser zarpado.

Ontem pus-me a sonhar a cores: a preto
e a neve insensível e branca também.
Sonhei que a saudade me seria um amuleto,
e que a falta de ti me faria velejar além.

Fui surpreendido e embarquei
numa ténue tempestade adentro,
adentro de infeções e vícios.
Fiz-me homem e abdiquei,
procurei as ideias ao centro,
mas só lá encontrei sacrifícios.

«jd»